segunda-feira, 21 de junho de 2010

Bissexualidade em movimento (agosto de 2004)

Por Regina Facchini


O II Encontro Paulista GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros), realizado entre 06 e 08 de agosto de 2004 na cidade de São Paulo, trouxe uma importante contribuição para o modo como o movimento por direitos sexuais tem trabalhado a questão de diversidade sexual. Pela primeira vez na história do movimento brasileiro, as/os bissexuais tiveram oportunidade de participar de um encontro do movimento de forma politicamente organizada
.
É comum ouvirmos brincadeiras maldosas envolvendo bissexualidade dentro e fora do movimento. O termo mais habitual para referir-se a bissexuais, ainda hoje, é o famoso “gilete”. O que sugere a idéia de “gilete”? Algo que corta dos dois lados? Alguém que tem a possibilidade de manipular e ocultar “o outro lado”? Que pode enganar, trair, machucar? Que tem mais chances de ter companhia num sábado à noite? 

Mas o que sabemos de fato a respeito do comportamento de pessoas enquadráveis no termo bissexual? Será que as pessoas querem sempre qualquer companhia num sábado à noite? Como será viver levando o peso de “ser gilete”? Apesar da presença cotidiana de pessoas que têm desejos, práticas e/ou identidades bissexuais no interior do movimento essas questões não vinham sendo debatidas até muito recentemente.

No final dos anos 70, quando surgiram os primeiros grupos de militância homossexual brasileiros, a prática de transar com homens e mulheres era geralmente percebida como tendo um caráter liberador. No entanto, dizer-se bissexual era relacionado a não assumir o que realmente devia ser assumido e poderia revolucionar de maneira profunda a sociedade: a homossexualidade. Nesse momento, dizer-se bissexual era igual a ser “enrustida/o”. Era muito importante afirmar “Sim, eu sou bicha!”, “Sim, eu sou lésbica!”

A partir de meados dos anos 80, um outro fator entra em cena: a aids. Em tempos de “peste gay” – como a aids era chamada no começo - , transar com homens e mulheres não é mais liberador, mas promiscuidade criminosa. Bissexualidade não tem relação apenas com ser “enrustido”, mas ser alguém que contamina, que trai mortalmente. Esse é o momento em que se fala muito da “ponte bissexual do HIV”. Apesar da aids estar, em termos epidemiológicos, mais relacionada ao sexo entre homens do que ao sexo entre mulheres, a mesma lógica se reproduz no raciocínio de muitas lésbicas, para quem uma mulher bissexual seria “suja” pelo contato com o homem, visto como necessariamente promíscuo.

 Entramos nos anos 2000, não se fala mais em “grupos de risco”, mas o movimento parece ter demorado um pouco para se livrar de todo estigma que foi sendo construído sobre a figura do/a bissexual e para questionar o fato de que falar em “ponte bi” é apenas tradução do preconceito homofóbico: o “homossexual sujo” contaminando o “universo heterossexual” puro.

Neste ano de 2004, a Parada do Orgulho GLBT levou mais de um milhão e meio de pessoas para as ruas de São Paulo e foram organizadas quarenta e duas paradas, com os mais variados tamanhos, pelas mais diferentes localidades do país. Desde o final dos anos 90, as paradas falam em diversidade e, nos últimos dois anos, começaram a surgir grupos ativistas que tomam por base a idéia de diversidade sexual, como o grupo Prisma, que se reúne na USP, e o Diversidade, que se reúne na Unicamp. 

Ao tomarmos por base este contexto, me vêem à cabeça várias perguntas. Em que medida o reconhecimento da bissexualidade e, por extensão, da diversidade sexual podem ser vistos como ameaça à visibilidade dos gays e das lésbicas? Não seria mais lógico pensar que a organização política de bissexuais pode representar mais um passo no sentido de explicitar a diversidade interna da “comunidade”? Se as paradas já deram uma solução alternativa à necessidade de assumir-se individualmente, será que centrar forças no assumir-se gay/lésbica, como estratégia militante, deve continuar tendo o mesmo peso que tinha anteriormente nas estratégias do movimento? Que luta por emancipação e cidadania é essa que, para existir, precisa negar a existência do outro e da diversidade?


Desde o início de março de 2004, na Associação do Orgulho GLBT de São Paulo, têm ocorrido as reuniões do projeto Espaço B, atividades quinzenais e abertas, que têm por objetivo construir uma base de argumentação sobre direitos humanos e (bi)sexualidades. Uma proposta semelhante - discutir bissexualidade sem formar um grupo específico ou restringir a discussão a pessoas que se identifiquem como bissexuais - tem sido desenvolvida, desde junho deste ano, pelo Mo.Le.Ca, grupo de lésbicas de Campinas. 

A articulação de uma rede informal de ativistas bissexuais e a formação desses espaços de discussão em grupos levou à demanda pela ampliação do critério de inscrições no II Encontro Paulista GLBT, de modo a aceitar inscrições de ativistas formalmente identificadas/os como bissexuais. No dia 08/08 pela manhã, 14 ativistas de várias localidades do estado (14% dos representantes de grupos inscritos no Encontro), formalmente inscritas/os como bissexuais, reuniram-se no II Encontro Paulista GLBT para discutir propostas específicas para o segmento.

Entre as decisões tomadas pelo segmento B e aprovadas na Plenária Final do II Encontro Paulista estão: 
  • a criação da Rede B, rede estadual de ativistas bissexuais, que procurará expandir-se e visibilizar a questão nacionalmente; 
  • o estímulo à discussão do tema bissexualidade nos grupos gays, lésbicos ou mistos já existentes, através de atividades abertas a pessoas de qualquer identidade sexual; 
  • a viabilização de campanha, no interior do movimento, com o objetivo de desconstruir imagens negativas associadas à bissexualidade e inserir a representação desse segmento em fóruns e encontros do movimento; a inclusão do segmento nas reivindicações levadas pelo movimento;
  • e a adoção, como diretriz para a atuação dos grupos, do princípio de procurar agir através de estratégias que enfrentem a homofobia sem contrapor negativamente homossexualidade a hetero ou bissexualidade, ou sem, equivocadamente, combater hetero e/ou bissexuais.

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